150 médicos de Saúde Pública enviam carta à Provedora de Justiça

Médicos de Saúde Pública

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Um grupo de 150 médicos de Saúde Pública assinaram a carta abaixo (transcrita na íntegra) que foi enviada à Provedora de Justiça, Dra. Maria Lúcia Amaral, e com conhecimento à Directora-Geral de Saúde, Dra. Graça Freitas.

O documento é ainda subscrito pelo Bastonário da Ordem Médicos, Dr. Miguel Guimarães, pela Direção do Colégio da Especialidade de Saúde Pública da Ordem dos Médicos e pela Direção da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública.


Exma. Provedora de Justiça,
Dra. Maria Lúcia Amaral,

cc Exma. Diretora Geral da Saúde,
Dra. Graça Freitas,

Foi com profunda consternação que nós, médicos de Saúde Pública e signatários desta carta, recebemos a informação do parecer de vossa excelência de dia 24 de março(1). Sobretudo por estarmos a enfrentar diretamente esta crise que todos atravessamos. Com esta pandemia, que assume os contornos de uma emergência de Saúde Pública, sentimos o dever e o imperativo categórico, de nos dirigirmos a V. Ex.ª, através desta carta.

Acreditamos na boa intenção do seu parecer e compreendemos a sua preocupação com a preservação do Estado de direito e dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos. Contudo, não podemos deixar de notar que a sua apreciação veio desencadear um processo que culminou na revogação das medidas determinadas pelas autoridades de saúde locais e regionais, já assoberbadas e com decisões muito complicadas a serem tomadas todos os dias. Já é claro nesta fase que o sistema burocrático de tomada de decisão, e os consequentes tempos de resposta, terá de ser, inevitavelmente, revisto no final desta pandemia.

Neste momento, discordamos de forma clara do seu parecer, pois a restrição de capacidade de resposta das autoridades de saúde locais e regionais coloca em causa o esforço de evitar a propagação da infeção a localidades para onde têm regressado diariamente emigrantes potencialmente expostos ao SARS-CoV-2. Realçamos que todas as nossas ações são fundamentadas em aspetos técnico-científicos na área de Saúde Pública.

Aliás, é por este motivo que a lei, através do número 1 do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 82/2009, de 2 de abril, prevê já a possibilidade de recurso hierárquico dos atos praticados pelas autoridades de saúde, estabelecendo no número seguinte a forma desse recurso. Encontra-se aí, já preservada na lei, a garantia da proporcionalidade e necessidade das decisões tomadas, bem como da garantia dos direitos e liberdades fundamentais, constitucionalmente protegidos, e do Estado de direito. Concordamos numa dúvida: a razoabilidade desta medida. Vossa Excelência entende que esta peca por excesso, nós entendemos que peca por defeito. Porventura, a não tomada atempada de decisões ajustadas irá obrigar a medidas mais penosas posteriormente.

À data em que escrevemos esta carta, o nosso país vizinho, Espanha, regista 72.248 casos e 5.690 mortos, em menos de um mês. A Organização Mundial de Saúde aponta a Europa e os Estados Unidos, atualmente, como os epicentros da pandemia. Os cidadãos portugueses que estão a regressar de áreas com alta incidência da doença são um risco para a Saúde Pública, não só para as suas famílias, como também para todos os habitantes de Portugal. De acordo com o relatório de situação n.º 026 da Direção-Geral da Saúde, de 28/03/2020, foram importados 105 casos de Espanha, 72 de França, 27 do Reino Unido e 22 da Suíça, sendo que esta lista continua, principalmente com países do espaço Schengen. Também é do conhecimento público que muitos destes casos originaram focos de doença no nosso País. Tal também levou a que entrássemos, no dia 26 de março, na fase de mitigação da pandemia em Portugal, denotando a existência de transmissão comunitária do vírus no nosso País.

Perguntamos, simplesmente, quem assume a responsabilidade perante a ocorrência de infeções em indivíduos vulneráveis? Indivíduos esses, tipicamente com maior representatividade em localidades do interior, cujo risco aumenta na sequência do regresso de emigrantes que não cumpram as normas de distanciamento social dos seus familiares e que o bom senso impõe. A responsabilidade dessas infeções não será, certamente, das autoridades de saúde que procuraram e continuam a procurar obviar a esse problema, apesar dos múltiplos constrangimentos que enfrentam.

Respeitando a memória de Ricardo Jorge e de outras figuras da Saúde Pública portuguesa com ações arrojadas, Portugal tomou medidas de coragem, com o tempo de vantagem que detinha sobre os seus congéneres europeus. Após o seu parecer, estamos agora a perder o sacrifício já empenhado, permitindo a importação descontrolada de potenciais casos de doença, sobretudo quando os mesmos terão relação próxima com grupos de especial risco.

Reconhecemos a importância de coordenação de medidas, mas a vontade de centralização das decisões finais em Lisboa levará a um processo mais burocrático resultando, inexoravelmente, num atraso da tomada de decisão que se pretende célere e adaptada ao contexto de cada aldeia, cada vila e cada cidade do nosso País. É fundamental reconhecer o valor das decisões das autoridades de saúde local e a sua interligação com as forças de segurança. Orientações serão sempre bem-vindas, revestidas de flexibilidade e prudência, numa altura em que temos de ser cada vez mais rápidos.

Compreendemos também a objeção de V. Ex.ª, do ponto de vista formal, relativamente à dualidade de tratamento relativamente a cidadãos nacionais e estrangeiros que regressam do estrangeiro. Contudo, cremos não ser suficiente, para bloquear uma decisão, a identificação de uma falha formal, que pode facilmente ser corrigida, estendendo a obrigatoriedade de isolamento profilático a todos os cidadãos que cruzam a fronteira, independentemente da nacionalidade, em todo o território nacional, pois, como muito bem refere V. Ex.ª, todos são potenciais focos de contágio.

A História julgar-nos-á a todos, como indivíduos e instituições, pelas medidas tomadas, mas sobretudo por aquelas que o não foram, perante esta pandemia. De pouco servirá aplicar medidas drásticas quando tivermos dezenas de milhares de casos em Portugal. Pedimos apenas que seja cumprida a lei, tendo em conta a nossa história e o nosso conhecimento. Confiamos que ela permite proteger o direito à vida e assegurar a intervenção oportuna e discricionária do Estado em situações de grave risco para a Saúde Pública, utilizando todos os meios necessários, proporcionais e limitados aos riscos identificados. O maior risco que enfrentámos, e ainda enfrentamos, é não agir em tempo útil.

Os médicos especialistas e médicos internos de Saúde Pública

(1) Comunicação da Provedora de Justiça sobre quarentenas decretadas por entidades regionais de 24/03/2020, publicado na página oficial do Provedor de Justiça no dia 27/03/2020, disponível na seguinte hiperligação: http://www.provedor-jus.pt/site/public/archive/doc/2020_03_24_DGS__2_.pdf


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